Ressonâncias de "Uma fantasia"
A invenção da prática lacaniana
por Leonardo Gorostiza
Em sua lembrada intervenção no IV Congresso da AMP sobre "A prática lacaniana. Sem standard, mas não sem princípios" – que aconteceu na ilha de Comandatuba, no Brasil, e que aqui reproduzimos - Jacques-Alain Miller situou três posições da psicanálise que dão lugar à prática da sugestão. Todas elas ligadas ao lema de um "isto funciona", quer dizer, sob o lema do discurso do mestre, ainda que este seja agora "pós-moderno".
Diante destas três opções, a prática lacaniana da psicanálise pressupõe, ao contrário, fundar-se em um "isso falha". Quer dizer, pressupõe fundar-se no sintoma como testemunho de uma relação contingente com o impossível. É o que faz do sintoma, aquilo que se enraiza em um encontro sempre traumático com a ausência de relação (proporção) sexual e que, desde então, se repete.
É nesse contexto que Miller destacou o que se segue e que, no meu entender, constitui o eixo central de nosso trabalho para o próximo Congresso em Buenos Aires, em 2012.
"Logo – assinala - existe a prática lacaniana ou, de preferência, existirá, pois se trata de inventá-la. Certamente,não se trata de inventar ex nihilo. Trata-se de inventa-la na via que abriu em particular o último Lacan." [1]
Trata-se, então, de inventar uma "prática sem valor", quer dizer, uma prática que exclui a noção de êxito e calibrar suas consequências em uma ordem simbólica que desfalece enquanto "ordem".
Trata-se da prática que Lacan anunciou em seu último ensino quando, enquanto ansiava pela invenção de um significante novo que não tinha - como o real - nenhuma espécie de sentido a propósito da interpretação, dizia:
"O primeiro seria extinguir a noção do belo. Não temos nada a dizer acerca do belo. É de outra ressonância que se trata, a fundar sobre o chiste. Um chiste não é belo. Não se sustenta senão de um equívoco ou, como diz Freud, de uma economia. Nada mais ambíguo do que esta noção de economia. Mas, pode-se dizer que a economia funda o valor. Bem! Uma prática sem valor, eis aqui do que iria se tratar para nós, de instituir." [2]
Assim, "Uma fantasia", desde o começo até o final, encontra-se animada por este enigmático desafio de Lacan. Como, em uma época onde tudo se "mede" em função do êxito alcançado ou por alcançar, se pode instituir e sustentar uma prática que faça do "falhar", seu fundamento? Mais ainda, como instituir e sustentar uma prática que não pode fazer do "falhar", a lei do real, mas que apenas pela contingência pode provar o real… como impossível, quer dizer, um real sem lei?
E com quem ou com o quê a prática lacaniana da psicanálise joga sua partida? Miller o destaca: não é tanto com os standards da outra psicanálise - a que quer reverdecer o declinante nome-do-pai e a tradição ou a que crê na eternidade dos conceitos freudianos – mas, de preferência, aquela que busca um alinhamento com o real da ciência sob uma pseudociência: a tradução neurocognitiva da psicanálise. Mas, sobretudo, a prática lacaniana ainda por inventar joga sua partida com "os novos reais que testemunham o discurso da civilização hipermoderna."
Eis aqui o ponto central que em nosso próximo Congresso deveremos interrogar.
E se "Uma fantasia" constitui algo assim como um programa de trabalho, um programa fundado nos enigmas que Lacan nos deixou em seu último ensino, nem por isso deixa de nos colocar, ao mesmo tempo, outros enigmas. Enumero apenas alguns.
Como conceber uma prática na qual do que se trata é apenas de diferentes modos de falhar?
Como conceber uma prática analítica na qual os semblantes com os quais a psicanálise se produziu (o pai, o Édipo, a castração…) puseram-se a tremer?
Como conceber uma prática que propõe uma renovação do sentido do sintoma, precisamente a partir daquilo que já não tem mais sentido e que só implica na repetição do gozo do encontro contingente e traumático com alíngua? Quer dizer, como concebê-la a partir de um sintoma que implica a repetição do Um do gozo que retorna sempre ao mesmo lugar, sem nenhuma espécie de sentido e que Lacan chamou sinthome?
Como conceber uma prática que faz fundamentalmente dos sintomas, não um sentido a decifrar, mas signos da não relação sexual?
Como conceber uma prática onde a interpretação aponta, não ao decifrado de um saber sempre hipotético como o inconsciente semblante, mas a alcançar a potência do sintoma como sintoma-gozo?
Como conceber uma prática onde o discurso do mestre hipermoderno já não é o avesso do discurso analítico, o qual põe em questão e obriga a re-situar sua função de des-identificação?
Como conceber uma prática em uma época na qual o inconsciente como saber não existe primariamente e na qual é necessário, então, o amor para lhe supor como saber, quer dizer, como condição para que S1 e S2 façam cadeia?
Finalmente, como conceber o final da análise e o passe quando o que está em jogo não é a liberação do fantasma ou do sintoma, mas o saber se haver (savoir y faire), cada vez mais, com um resto sintomático?
A lista de enigmas e perguntas poderia prosseguir. É que, tal como assinalamos no Editorial de apresentação dos Papers que haverão de balizar nosso trabalho para Buenos Aires 2012 (ver neste mesmo site), as consequências desta conferência de Jacques-Alain Miller continuam sendo inumeráveis e fecundas para pensar as consequências para a cura na nova ordem simbólica.
Abordá-las, prossegui-las e situá-las em nosso contexto mais atual será um modo de tentar, uma vez mais, explicitar os fundamentos da psicanálise lacaniana, para que agora, no Século XXI, continue sendo uma "cura" que não é como as demais.
Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes
NOTAS
- O negrito é meu.
- Lacan, Jacques, Le Seminaire, Livre 24, 19 abril 1977, en Ornicar? 17/18, Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. (Os negritos e a tradução para o español são meus).
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